segunda-feira, 13 de outubro de 2008

RÁDIO IMAGINÁRIO


(Edson Leão)
Cai o azul
Vem a noite
Prédios,
luzes,
pontes
Carros desenhando em seus faróis, pincéis brilhando teu olhar
Minha canção toca no rádio imaginário
Do teu sonho
Na hora em que o silêncio quer falar
Dissolve a sombra ilusória da distância entre nós dois
Na hora em que desejo quer falar
Caminha sobre avenidas, pés gigantes
Pulsa em tubulações meu sangue errante
Meu corpo atravessa oceanos nunca dantes
Em instantes
Pra teu corpo visitar

SOBRE ESTA NOITE (xote/blues)



(EDSON LEÃO)

Não tenha medo do que eu disse esta noite
O silêncio é tão escuro quanto o que eu possa falar
Pois a palavra lança luzes sobre as sombras
Sobre o quarto, sobre os sonhos
Que esquecemos de sonhar
Pois o que fomos ainda paira sobre os versos
Sobre tantos universos que esquecemos de inventar

Eu te criei à imagem do meu sentimento
Da saudade, do lamento pelo o que eu nunca vivi
Eu te perdi pisando em falso sobre as águas
Tropeçando em minhas mágoas, medos que eu nunca entendi


“...ô mana deixa eu ir, ô mana eu vou só, ô mana deixa eu ir pro sertão do Caicó...”

MINHA MÚSICA


(Edson Leão)

Minha música é algo assim
Pedaços de quase tudo
Caindo do chão em mim
Música para acalmar atônitos
Música para sacolejar pingüins
Música para ouvir esperando o ônibus
Musica para regar jasmins
Musicas sem começo, preço ou fim
Músicas que não separam o joio
Músicas que fazem ninho em mim
Minha música é algo assim
Retalhos de quase nada
Subindo pro céu enfim...

sábado, 26 de julho de 2008

TAPETE VERMELHO



(Edson Leão)

Eu vejo o mundo como você vê
Alguns graus de miopia e sonho
Vontade de estar em paz,
Com quem é da paz,
E com quem é de guerra,
Também ter paz

Eu vejo você ainda
Uma foto
Numa lanchonete do tempo
Um sentimento me avisando o futuro
Um túnel pressentindo a luz
em meio ao pleno escuro

E aqui estamos nós
Sabendo que nada é seguro
Já que todo muro é prisão
E viver é dançar na corda
Um samba

Me equilibro em teus dias
Como palavras numa canção
Como uma criança que acorda
Colorindo as linhas da vida
Com pincéis de sonhos na mão

Sou como você,
(talvez como todos)
Meio milênio
Meio instante
Meio hippie, meio punk

“Pergunte ao pó”
Pergunte a John Fante,
Um novelo, um elo, um nó
Um beat errante
dentro de uma cidade só

Meio careta, meio nerd
Mas sempre o avesso de um skinhead
E sempre espreitando o avesso
Do meu rosto,
No oposto do espelho...

Te ofereço meus versos
Como um tapete vermelho
Pobre luxo da minha lavra
Castelo de areia da palavra
Margeando teu mar
Onde o rio do meu ser deságua.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

JUIZ DE FORA

(Edson Leão)
Do brejo vão do tempo
Saltam ruas, avenidas
Mil ciclos de estrelas
Sobrevoam as cabeças
As pedras se empilham
Viram casas, sobem prédios
As pontes cobrem o rio
Separando cada lado
As vidas sobem morros
Padecer de sol a sol
Pessoas sobem morros
Pra descer no carnaval
Um samba pisa o brejo
Pisa o tempo, cruza as pontes
Cabrochas pisam pedras
Cruzam rios, calçam estrelas
Que baixam até o asfalto
Só pra vê-las desfilar

CANTIGA AO PÉ DA SERRA


(EDSON LEÃO)

VAGA LUME LUMIANO
ACENDE O AR

SAPO ENSAIA UM PAPO
E INTEGRA O MEU CANTAR

CASA FUMA LENHA
E INCENSA O BOM DO AR

GENTE BEBE UNS GOLE
ESPERA VIR LUAR

VI NO MÊI DA NOITE
OS ZÓI DO BREU BRILHÁ

A LENDA DO VÔ TAIÁ


(Edson Leão)

Quando entristeceu
Vô Taiá fez um tái nos pulso
Mas num morreu
Deixou as água do rio vermêia
A terra virô barro
Cum o jorro das suas vêia
Ele viu que aquilo era bobage
E riiiu...

Provô umas planta
E riu mais ainda
E veno que a chuva já vinha
Puxô o gogó na cantoria
E pegô dum atái pelo pasto
No mêi das bosta dos boi
Cantano uns versin desse jeito:
“Vô taiá pelo pasto
que a chuva já vem
vô taiá pelo pasto morena
pra vê se a onda vem...”

Vô Taiá andô inté iscurecê
E sumiu no breu
De perto ninguém mais viu
Mais fala o povo
Que quem vai na estrada de noite
Vez ou outra escuta o véi
Cantando do mesmo jeito
E as vêis fazeno troça
Cuns cabôcro de idéia torta
Que só faiz istrago nessa vida rasa
E se assusta quando ele ensaia:
“Vô taiá pelo pasto
que a chuva já vem
vô taiá pelo pasto morena
pra vê se a onda vem...”

domingo, 11 de maio de 2008

DEUS E O DIABO (AINDA...)


(Edson Leão)
O click da arma
Que falha ao acaso
É a única proteção...

Pois os tais coronéis
Do passado presente
Ainda armam jagunços,
Inda matam sem paga
Inda mancham o chão.

E o dique que barra
A esperada mudança
Se chama justiça
A cega balança
De duas medidas
De causas compradas
De honras vendidas
De barbas atadas
De calça arriada
Posando de quatro
De rabo tão preso
Negando outro fato
De cú tão travado,
Comendo na mão.

Anapu, nosso atraso
É o Brasil norte a sul
É a lei feita à bala
Lei da mala com grana
Do cinismo sacana
Do dono que manda.

É queima de fogos
É queima de arquivo
É queima de índio
É à queima-roupa
É à sangue-frio
É sangue indefeso
Que a lei nunca poupa.

É a morte com aviso
De freira, de índio,
De quem não se vende
Do humano indigente
De quem não se rende
De algum Chico Mendes
De quem não se cala.

E o país vê da sala
A chacina na tela
Se embriaga e consente
Silencia e espera
Uma nova novela
Outra vida, outra banda
Um cortejo demente
A espiar da janela...

quarta-feira, 7 de maio de 2008

SOBRE AS HORAS


(Edson Leão)
Quando um aquário prende o céu
E os ossos do tempo
São regados a vinho
Exumados por lembranças
Sob a proteção de nuvens
Ter você ao meu lado
Paralisa desabamentos
E acalma a corrosão das horas...
Ilustração: Salvador Dali

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Claridade


(Edson Leão)
Esbarrei na claridade
Olhos cambaleiam
A luz é como um filme
Entrando em minhas veias
O prisioneiro volta à vida
A luz perfura a pele
Seu corte é bem-vindo
Esqueço o tribunal
A masmorra
Os velhos manuscritos
O céu visto da cela
E os planos pra uma fuga
As mãos e pernas tremem
A pele cobre os ossos
Mas renasço além das cinzas
No corpo queima a fênix...

Diante da Lei


(Franz Kafka)
Diante da Lei está um guarda. Vem um homem do campo e pede para
entrar na Lei. Mas o guarda diz-lhe que, por enquanto, não pode autorizar lhe
a entrada. O homem considera e pergunta depois se poderá entrar mais tarde.
— "É possível" – diz o guarda. — "Mas não agora!". O guarda afasta-se então
da porta da Lei, aberta como sempre, e o homem curva-se para olhar lá dentro.
Ao ver tal, o guarda ri-se e diz. — "Se tanto te atrai, experimenta entrar,
apesar da minha proibição. Contudo, repara sou forte. E ainda assim sou o
último dos guardas. De sala para sala estão guardas cada vez mais fortes, de
tal modo que não posso sequer suportar o olhar do terceiro depois de mim".
O homem do campo não esperava tantas dificuldades. A Lei havia de ser
acessível a toda a gente e sempre, pensa ele. mas, ao olhar o guarda envolvido
no seu casaco forrado de peles, o nariz agudo, a barba à tártaro, longa, delgada
e negra, prefere esperar até que lhe seja concedida licença para entrar. O
guarda dá-lhe uma banqueta e manda-o sentar ao pé da porta, um pouco
desviado. Ali fica, dias e anos. Faz diversas diligências para entrar e com as
suas súplicas acaba por cansar o guarda. Este faz-lhe, de vez em quando,
pequenos interrogatórios, perguntando-lhe pela pátria e por muitas outras
coisas, mas são perguntas lançadas com indiferença, à semelhança dos grandes
senhores, no fim, acaba sempre por dizer que não pode ainda deixá-lo entrar.
O homem, que se provera bem para a viagem, emprega todos os meios
custosos para subornar o guarda. Esse aceita tudo mas diz sempre: — "Aceito
apenas para que te convenças que nada omitiste". Durante anos seguidos,
quase ininterruptamente, o homem observa o guarda. Esquece os outros e
aquele afigura ser-lhe o único obstáculo à entrada na Lei.
Nos primeiros anos diz mal da sua sorte, em alto e bom som e depois, ao
envelhecer, limita se a resmungar entre dentes. Torna-se infantil e como, ao
fim de tanto examinar o guarda durante anos lhe conhece até as pulgas das
peles que ele veste, pede também às pulgas que o ajudem a demover o guarda.
Por fim, enfraquece-lhe a vista e acaba por não saber se está escuro em seu
redor ou se os olhos o enganam. Mas ainda apercebe, no meio da escuridão,
um clarão que eternamente cintila por sobre a porta da Lei. Agora a morte esta
próxima. Antes de morrer, acumulam-se na sua cabeça as experiências de
tantos anos, que vão todas culminar numa pergunta que ainda não fez ao
guarda. Faz lhe um pequeno sinal, pois não pode mover o seu corpo já
arrefecido. O guarda da porta tem de se inclinar até muito baixo porque a
diferença de alturas acentuou-se ainda mais em detrimento do homem do
campo.
— "Que queres tu saber ainda?", pergunta o guarda. — "És insaciável". —
"Se todos aspiram a Lei", disse o homem. — "Como é que, durante todos
esses anos, ninguém mais, senão eu, pediu para entrar. O guarda da porta,
apercebendo se de que o homem estava no fim, grita-lhe ao ouvido quase
inerte. — "Aqui ninguém mais, senão tu, podia entrar, porque só para ti era
feita esta porta. Agora vou me embora e fecho-a".

terça-feira, 25 de março de 2008

Fiz o que pude (ao som de um samba-canção)


(Edson Leão)
Fiz o que pude
Rachei oceanos
Mordi a maçã
Andei sobre as águas
Trancei teus cabelos
Surfei sobre as mágoas
Fui anjo e satã
Num ninho de sobras
Despi meu inferno
Rascunhei sete céus
Te amei sem presságios
Soterrado em temor
Fiz amor com a beleza
Me apaguei com a manhã
Fiz a guerra e a ternura
Numa mesma oração
Ilustração: Salvador Dali.

JANDIRA



(Murilo Mendes)

O mundo começava nos seios de Jandira.

Depois surgiram outras peças da criação:
Surgiram os cabelos para cobrir o corpo,
(Às vezes o braço esquerdo desaparecia no caos.)
E surgiram os olhos para vigiar o resto do corpo.
E surgiram sereias da garganta de Jandira:
O ar inteirinho ficou rodeado de sons
Mais palpáveis do que pássaros.
E as antenas das mãos de Jandira
Captavam objetos animados, inanimados.
Dominavam a rosa, o peixe, a máquina.
E os mortos acordavam nos caminhos visíveis
[ do ar
Quando Jandira penteava a cabeleira...

Depois o mundo desvendou-se completamente,
Foi-se levantando, armado de anúncios luminosos.
E Jandira apareceu inteiriça,
Da cabeça aos pés,
Todas as partes do mecanismo tinham
[ importância.
E a moça apareceu com o cortejo do seu pai,
De sua mãe, de seus irmãos.
Eles é que obedeciam aos sinais de Jandira
Crescendo na vida em graça, beleza, violência.
Os namorados passavam, cheiravam os seios de
[ Jandira
E eram precipitados nas delícias do inferno.
Eles jogavam por causa de Jandira,
Deixavam noivas, esposas, mães, irmãs
Por causa de Jandira.
E Jandira não tinha pedido coisa alguma.
E vieram retratos no jornal
E apareceram cadáveres boiando por causa de
[ Jandira.
Certos namorados viviam e morriam
Por causa de um detalhe de Jandira.
Um deles suicidou-se por causa da boca de Jandira
Outro, por causa de uma pinta na face esquerda
[ de Jandira.

E seus cabelos cresciam furiosamente com a força
[ das máquinas;
Não caía nem um fio,
Nem ela os aparava.
E sua boca era um disco vermelho
Tal qual um sol mirim.
Em roda do cheiro de Jandira
A família andava tonta.
As visitas tropeçavam nas conversações
Por causa de Jandira.
E um padre na missa
Esqueceu de fazer o sinal-da-cruz por causa de
[ Jandira.

E Jandira se casou
E seu corpo inaugurou uma vida nova.
Apareceram ritmos que estavam de reserva.
Combinações de movimento entre as ancas e os
[ seios.
À sombra do seu corpo nasceram quatro meninas
[ que repetem
As formas e os sestros de Jandira desde o
[ princípio do tempo.

E o marido de Jandira
Morreu na epidemia de gripe espanhola.
E Jandira cobriu a sepultura com os cabelos dela.
Desde o terceiro dia o marido
Fez um grande esforço para ressuscitar:
Não se conforma, no quarto escuro onde está,
Que Jandira viva sozinha,
Que os seios, a cabeleira dela transtornem a
[ cidade
E que ele fique ali à toa.

E as filhas de Jandira
Inda parecem mais velhas do que ela.
E Jandira não morre,
Espera que os clarins do juízo final
Venham chamar seu corpo,
Mas eles não vêm.
E mesmo que venham, o corpo de Jandira
Ressuscitará inda mais belo, mais ágil e
[ transparente.

segunda-feira, 24 de março de 2008

O vôo que escapou entre os dedos


(Edson Leão)

Caminhei sob as nuvens do crepúsculo
Procurei a salvação em antigos ritos
Fui atrás dos passos do anjo que me guiava
Mas estava na minha vez de vaguear pelos caminhos
Entre as galerias do centro de Juiz de Fora
Caminhei sem rumo em meio a pilhas de velhos livros
Sem encontrar o volume que abriria as portas
Aquele da biblioteca antiga
Aquele que tantos procuraram...
Aprendi que eu era igual a todos
Só mais um contemplando a queda
A grandiosidade e a miséria da queda
Como uma grande corredeira de avassaladora pressão
Porque será que algo me lembra James Dean?
Porque, os anjos desgrenhados do rock?
Sem asas, sujos de carvão na fogueira
Sem asas, vagando pelos bairros do subúrbio
Sem asas, amplificando sua angústia ao absurdo
Sem asas, vomitando o sonho nos banheiros de bares sujos
Sem asas, Lennons rubros incendiando o celeiro da paz
Sem asas, mutilando suas vidas como um Vicious transcedental
Sem asas, num disparo Cobain contra as idéias coaguladas
Sem asas, vendo o tempo arrasar suas colheitas
Sem asas, desengonçado como um albatroz no convés
Sem asas, procurando algum trampo na tarde fria e surreal
Sem asas, atravessando a Rio Branco por milhões de noites
Sem asas, engolindo o Calçadão pela milésima vez
Sem asas, se sentindo mais um, ao mergulhar na matilha
Sem asas, procurando o vôo que escapou entre os dedos...

Mergulho


(Edson Leão)

Na esquina da Rio Branco com a Halfeld
Prendo a respiração e mergulho
A multidão me engole
Lanço preces do fundo do mar
Qual deus irá escutar?
Sou o ancião da tarde
Minhas vozes foram dilaceradas
Mil retalhos se espalham
Sobre as pedras do calçadão
Das cordas, arranco histórias
A mão negra recolhe as moedas
Que o descaso deposita no chão
Sou o artesão contorcendo fios
Dando formas, tecendo avisos
Dou um riso pra quem me estranha e olha
“Quê isso mê’rmão? Quanta pressa”
A cidade segue a corrosão de seus dias
Sou o louco que há milênios coça a barba
Encostado num canteiro em frente à uma loja
Rindo de tudo e de todos
Pensando na insanidade do jogo
E balbuciando num dialeto ancestral:
“Quê isso mê’rmão? Quanta pressa!”
E a esteira rolante não para
Leva rebanho, traz rebanho
“Êh! Boiada estranha, usando tênis da moda!”
“Êh! Boi cansado, solado gasto de num achá trabaio!”
“Êh! Boi de sapato e gravata! Corre não, que cê vai morrê mais cedo!”
“Êh! Boi de pé inchado, arrasta os bizerrin pelas mão!”
“Êh! Boi que olha as vaca! Mastiga o chiclete, mas num baba não!”
Sou a barriga de tédio que toma chope depois do trabalho
Sou o baralho de pernas que vem e vai
Sou as Lojas Americanas com uma “promoção sensacional para o dia das mães”!
Sou o Cine Central de skate, coturno e moicano
Sou o CD pirata no acelerar do “corre que a polícia evêm!”
Sou os velhos vinis voltando à vida
Sou as galerias, as galerias, sempre as galerias
Desde tempos imemoriais, as galerias
Antes de nascer a cidade, as galerias
Portais interdimensionais, as galerias
Ligando JF a Machu Pichu, as galerias
Entre o passado e o futuro, as galerias
Submersas na escuridão, as galerias
Ligando o calçadão a Copacabana, as galerias
Abrindo um estranho vazio em meu coração, as galerias
(Memória, memória, memória... porque tanta dor e poesia?)
Entre o céu e o inferno, as galerias
Depois do apocalipse as galerias
Até quase chegar na Batista de Oliveira, as galerias
No começo de um novo mundo, as galerias...

Memória e cidade


(Edson Leão)

Rever ladeiras e ruas
Ser quase pedra dessa paisagem
Nem tanto a que piso em meu cansaço
Bem mais a que me espreita da memória.

Seriam as casas
Palavras que escrevi com o olho?
Seriam as janelas olhares
Que me espreitam do verso?

Quantas paredes destas lojas fechadas
Fizeram-se do silêncio em minha escrita errática?
Quanto da matemática desse vazio insone
Deriva da subtração dos gestos
Nos quais não saciei minha fome?

Quem me devolverá meu nome?
Aquele que eu abandonei na jornada.
Quem acordará o timbre dessa madrugada?
Antes que os tamancos falem outra vez que é dia
Trazendo o bocejar das fábricas
E os carros que saltam do amanhecer ao nada...?

sábado, 22 de março de 2008

Nunca transei com a beleza em minha vida


(Lawrence Ferlinghetti)

Nunca transei com a beleza em minha vida
Fiquei me repetindo
suas graças máximas

Nunca transei com a beleza em minha vida
mas quem sabe transei
fiquei me repetindo
a beleza nunca morre
mas fica à parte
entre os aborígenes
da arte
e muito acima
dos campos em que o amor batalha

É bem lá no alto disso tudo
é claro
Senta no mais raro trono
do templo
lá onde os diretores de arte se acham
para escolher as coisas.
dignas de imortalidade

Eles sim transaram com a beleza
a vida inteira
E provaram do orvalhomel
e beberam os vinhos do paraíso
assim eles sabem muito bem como
uma coisa linda é uma jóia
infinda e infinda
e como nunca nunca ainda
vai virar uma máquina
de perder dinheiro
como alguma coisa sem vida

Ah não eu não transei
espaços de beleza como esses
com medo de acordar de noite
com medo de não perceber
algum movimento que a beleza fez

Mesmo assim eu dormi com a beleza
no meu jeito desajeitado
e aprontei mil e umas
com a beleza na minha cama
e assim lá se vai um poema ou dois
e assim lá se vão dois poemas ou um
nesse mundo com cara de Bosch

SAUDAÇÃO



(Lawrence Ferlinghetti)

A cada animal que abate ou come sua própria
espécie
E cada caçador com rifles montados em
camionetas
E cada miliciano ou atirador particular
com mira telescópica
E cada capataz sulista de botas com seus cães
& espingardas de cano serrado
E cada policial guardião da paz com seus cães
treinados para rastrear & matar
E cada tira à paisana ou agente secreto
com seu coldre oculto cheio de morte
E cada funcionário público que dispara contra o
público ou que alveja-para-matar
criminosos em fuga
E cada Guardia Civil em qualquer pais que
guarda os civis com algemas & carabinas
E cada guarda-fronteiras em tanto faz qual
posto da barreira em tanto faz qual lado de
qual Muro de Berlim cortina de Bambu ou
de Tortilha
E cada soldado de elite patrulheiro rodoviário
em calças de equitação sob medida &
capacete protetor de plástico &
revólver em coldre ornado de prata
E cada radiopatrulha com armas antimotim &
sirenes e cada tanque antimotim com
cassetetes & gás lacrimogênio
E cada piloto de avião com foguetes & napalm
sob as asas
E cada capelão que abençoa bombardeiros que
decolam
E qualquer Departamento de Estado de qualquer
superestado que vende armas aos dois lados
E cada Nacionalista em tanto faz que Nação em
tanto faz qual mundo Preto Pardo ou Branco
que mata por sua Nação
E cada profeta com arma de fogo ou branca e
quem quer que reforce as luzes do espírito
à força ou reforce o poder de qualquer
estado com mais Poder
E a qualquer um e a todos que matam & matam & matam & matam pela Paz
Eu ergo meu dedo médio na única saudação apropriada

Prisão de Santa Rita, 1968

[Tradução: Nelson Ascher]

quinta-feira, 20 de março de 2008

O AMOR ÀS VEZES SE ENCONTRA...


(Edson Leão)
O amor às vezes se encontra
Numa esquina da cidade do desejo
Quanto de amor pode estar no perfume
Daquela que o acaso me esbarra
Numa loja de departamentos
Da velha cidade do desejo?

Teria quanto amor na saliva
Da menina que deixou só um beijo
Numa das velhas noites esquecidas
Da eterna cidade do desejo?

Estaria o sal do amor
Sob o tempero do suor
Na pele daquela dança
Num dos remotos bailes
Da solitária cidade do desejo?

O amor às vezes se perde
No labirinto de ruas
Da cansada cidade do desejo.
O amor busca outras casas
Perde o bonde e o endereço
Esquece de perguntar à dor
Qual é o preço de cada entrada
No cinema de sonhos despedaçados
Da selvagem cidade do desejo...

CONTO DE FADAS


(Edson Leão)
A menina de cabelos de sonhos
Desliza entre os dedos de sua própria mão
Dos olhos, luzes coloridas explodem
E vasculham a aridez
Dos supermercados do mundo.

Ela teria todos os corpos
Todas as almas
Litros de sangue
Todas as garrafas
E artérias do mundo
mas em qual vitrine
Encontraria sua paz?

Pela estrada de tijolos amarelos ela segue
Sobre sua bicicleta de nuvens
Ela pesa mais que a gravidade de Júpiter
Entre suas pernas latejam influxos de Vênus
Em sua raiva rufam tambores de Marte
E a Via-Láctea pede passagem em seus seios

Ela seria uma deusa...
Uma heroína...
Uma mulher fatal suicída...
Não fosse só uma menina
Na escuridão do castelo
buscando em cada quarto a saída...

DIA INTERNACIONAL DA MULHER


(Edson Leão)
Para o fogo foram as bruxas
Para o forno e o fogão
Para a cama e a mesa
Para o matrimônio
Sem amor ou escolha
Para o escritório
Pros tribunais
Disputando a guarda
Para o mercado de trabalho
Disputar uma vaga
Com menores salários
Para a dupla jornada
Tripla ou quadrupla
Para os anti-depressivos
Pra segurar a barra
Para o mercado de escravas
Pra casa do caralho
Para as bandas de Axé
Pra mostrar as formas
Para a delegacia de mulheres
Mostrar suas marcas
Para as casas de strippers
Pra mostrar suas almas...

Pra onde mais?
Pra onde mais vai essa história?
Pra onde mais?
Pra onde mais vai essa história?

O SACRIFÍCIO




(Edson Leão)
Neblina e luz cobrem as flores
Sob o sol invernal
Ela caminha nua
Os pés no orvalho
Seu corpo acolhe os pássaros
E ameniza a dor do dia
A aldeia dizimada
A fumaça ainda sobe
As casas em cinzas
E o choro das mulheres
Ela prepara o ritual
Ela pode invocar os deuses
E as almas de antigos heróis
Ela mergulha no rio
As águas gelam a pele
Ela invoca os espíritos
E entrega aos peixes seu corpo...

PAREI AS ENGRENAGENS


(Wesley Carvalho/ Edson Leão)

DOMEI OS CARROS DAQUELA TARDE CINZA

FERTILIZEI AS NUVENS ATÉ COLHER O AZUL

CONDECOREI MENDIGOS COM AS CHAVES DA CIDADE

PAREI AS ENGRENAGENS E FIZ UM CARNAVAL

E AS PERNAS SAMBARAM NA AVENIDA ELÉTRICA

ESPARRAMANDO EMBRULHOS, TALÕES, CARTÕES DE CRÉDITO

E INFINITOS DÉBITOS COM A VIDA O SOL, O AMOR


DEIXEI CAIR OS PRÉDIOS, PROLIFEREI INSETOS

OS OLHOS TÃO VERMELHOS DE ARRANHAR A PAISAGEM

PLANTEI FLORES NOS POSTES PRA ENFEITAR OS TEUS CABELOS

PAREI AS ENGRENAGENS E FIZ UM CARNAVAL

E AS PERNAS SAMBARAM NA AVENIDA ELÉTRICA

ESPARRAMANDO EMBRULHOS, TALÕES, CARTÕES DE CRÉDITO

E INFINITOS DÉBITOS COM A VIDA O SOL, O AMOR

Obs.:Pintura - Gerson Guedes

Desejo


(Edson Leão)
A arte do incômodo
Quer vir nos cutucar
Cobrir de fogo o ar
Abrir de novo o amar

Um solo de desconsolo
É um som querendo soar
É o ardil de naturezas
Tentando se harmonizar

Onde a alma é recheio do corpo
E o corpo o perfume da alma
Dia a dia a evaporar...

Me empresta a tua poesia
Tua carne a se perder no ar

Tua dança no sal do solo
Tua sola no meu pisar
E caminhemos de pés descalços
De dez cansaços nos recobrar

Dobrar esquinas nos teus joelhos
Nas tuas cochas me acochambrar
Chegar na entrada do teu silêncio
No vão da sede me embriagar

E que sejam os rios, as pedras,
O chão úmido o nosso abrigo
Nas tintas de um deus desejo
Deitar nos lençóis das eras
E encomendar à eternidade
A chave eterna e sã de um beijo...

O NOVO VÍRUS DA MODA


(Edson Leão)
Temos corrido de um lado pro outro

Arrastando a mobília dos dias

Comprando e vendendo fantasmas

Tirando fotos ao celular

Para serem esquecidas

Para nunca revelar

A nossa falta de vida

A nossa falta de amor


Que tal um sexo virtual?

Qual era o odor das folhas verdes do parque?

Há quanto tempo já não sai pra dançar?

Quantos e-mails acabou de apagar?

Quantos amigos você já não vê?

Qual era o mesmo o tal do gosto da vida?

O novo vírus da moda

Agora é a solidão.


Qual cartão comprará a alforria

Das paredes dessa bela prisão?

Qual será nova droga anti-tédio

Qual cosmético detém a erosão?

Qual será o site de auto-ajuda?

Quem será o seu guru virtual?

Se na poltrona da deprê o corpo afunda

Pedindo ajuda aos mil canais da TV?
Ilustração: Réne Magritte - "Os Amantes".

sonhos de bosch


(Edson Leão)
Vamos isolar os fumantes
Os amantes
Os poetas

Vamos fazer nossas leis valerem
Pros sem defesa
Pros vacilões
Pros sem certeza

Vamos condenar os professores
Os idealistas
Os pouco práticos

Vamos dar mais caviar e ração
Pros cães políticos
Pros mafiosos
Pros alpinistas sociais de qualquer casta

Pras putas castas
Santas fingidas
Vamos lavar com nosso sangue as avenidas
Com mais cachaça
Mais fantasia

Enquanto a realidade engole a vida
Abre a ferida
Transforma em chaga

E a gente paga
Mais um jabá
Outra propina

Pra anestesiar,
Outra morfina
Outra novela
Outra rotina

LIVRO DAS HORAS


(Edson Leão)
O céu se despedaça às vezes
Cacos da taça de um deus pagão
Um anjo bêbado que quebrou seu copo
Um demônio tolo a apedrejar vidraças
Um cantor otário a desperdiçar palavras
Suas lágrimas de despedida
Meu sonho em estilhaços
Espaçonaves em colisão
Um satélite a vomitar estrelas
Um olho em delírio à espreita
Tua saudade que deita em meu colo
O sabor do primeiro beijo
A roda dos dias que segue
O vento batendo as portas
E revirando o livro das horas...