quinta-feira, 12 de abril de 2012

Vai-se o poeta, ficam os dedos


(Edson Leão)
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...
Vai-se o poeta, ficam os dedos
Digitais tatuadas nos versos
Dedurando...
Confessando que ele se viciou em sentir
E por vezes em fingir ser dor
A dor que a poesia sedou
A dor que se deu no papel
No guardanapo
Numa canção entalhada a cinzel

Vai-se o poeta para o céu
Depois de uma temporada no inferno
Vai-se o poeta de terno
Posar pra foto em carteira
Passaporte, viagem certeira
Vai-se o poeta atrás do eterno
Vai-se o poeta, ficam os dedos
Rasurados no copo que a solidão tatuou
Num brinde num bar com ninguém
Ouvindo uma canção, quase réquiem
E rindo... como só sabe rir
Quem dessa vida percebe
O quanto gozou e sofreu

Vai-se o poeta, ficam os dedos
O médio erguido pro alto
“Na única saudação apropriada”
Tal qual prescreveu Ferlinghetti

Vai-se o poeta, ficam os dedos
Metáforas apontadas contra as caras
Pasmadas, rubras, falsas
Carapuças mal vestidas
Carapaças mal trancadas
Dos poderosos
Pegos em falso em suas trapaças
“como cachorros dentro d’àgua no escuro do cinema*”

Vai-se o poeta, fica o poema
Por que um dia tudo passa
E ficar por aqui
É marcar passo
A contar estrelas no chão da tristeza
A costurar estragos no céu da alegria
A contar espasmos nos lençóis do desejo
É muita trilha, é muito pão, é muito beijo
De cansar o sapato, o coração,e os nervos
Até que um dia...
Tudo para!
Num banco da Estação de Astapovo
Com Tolstói e Quintana em outro jogo...

Vão-se os dedos, por fim, também
Ficam os anéis...
De saturno
Que por seu turno...
Prosseguem...
Como a Terra, como as guerras...

Vai-se o poeta e tudo fica
Como se nada mais tivesse sido
Nada mais que um hai kai no vão do tempo
Uma folha que cai aos pés do outono
No silêncio acarpetado do infinito
Um simples gesto...
Porém...
Belo...
...
 .

quarta-feira, 11 de abril de 2012

SOBRE GAVETAS E ETERNIDADES

(Edson Leão)


Em cada gaveta esqueço
Poeira de milênios
Traços de vida
Versos rascunhados
Inúteis fotografias
A passagem de uma sombra
Um murmúrio do silêncio
Uma gota do eterno
Que provei sem planejar
O que guardo são entulhos
A voz da vida é sem molduras
Sem amarras
Sem açudes
Flui num rio
Vai sem mar
Escoando com prazer
Porque tentar lhe segurar?
Nossa avareza por momentos
Impede o novo de tocar
A nota funda
O dó no peito
No teatro dessa carne
Que finge estátuas de sal
Submersas na sede de sol...