sábado, 25 de abril de 2009

O LIVRO DOS DIAS*


(Edson Leão)
O poeta rascunha restos
que toquem o tato de alguns sentidos
O poeta resenha restos
que movam o inerte de nossos dias
Talvez nada que transforme
a substância de nossas vidas
Talvez nada que transborde
o gosto raso de nossas vidas

Nesse tempo de vacas magras
nesse tempo de horas rudes
ferir ou ser ferido
traz algo mais do que destino

Firo o olho na luz que me falta
ou a sombra adensa ao meu gesto cego
ergo muros com medo das ruas
trincheiras ricas
onde o abismo cresce
O poeta desenha rostos
que morrem no inerte de nossos dias
Talvez algo ainda altere
num sub-instante as nossas vidas

Família oculta entre muralhas
famílias mortas vendo TV
Ferir ou ser ferido
traz algo mais do que destino.

*Musicado por Hudson Coelho nos anos 90.
Ilust.: Salvador Dali.

NADA TÃO NOBRE*


(Edson Leão)
Nada tão nobre
quanto as palavras do vento
Nada tão pobre
quanto palavras ao vento
meu verso sem rédeas
é indigente ao relento
um canto lento
ecoando num vale
nas horas mais surdas
que a humanidade esquece...

Nada tão nobre
quanto as virtudes do invento
Nada tão pobre
quanto um camelo sedento
Meu verso nem te comove
soa qual esquecimento
na noite fria de um tempo
na brisa um sussurro atento

"Sou o que soa
o que pede pra se cantar"**
um canto no ar
ecoando num vale
nas horas mais surdas
que a humanidade esquece...


*Musicado por Hudson Coelho nos anos 90.
** "Muito Romântico" - Caetano Veloso.
Ilust.: Gustave Doré (Dom Quixote)

quarta-feira, 22 de abril de 2009

OUTONO EM JF


(Edson Leão)

É outono em JF
Mais uma casa cai
Prédios sobem inúteis
Pessoas sonham inúteis
Com o dinheiro que não vem
Com o aumento pro ano que vem
Com o bonde perdido ou um trem...

É outono em JF
Centenas de folhas caem
E o Parque Halfeld segue
Inerte
Olhando o jogo de damas
De um velho quixote cansado
E seus aposentados moinhos
No frio que espreita a tarde
e invade a carne qual infarto.

É outono em JF
E os sonhos caem
Como sistematicamente
Fazem aqui há décadas
Segundo o que ouvi
Segundo o que disseram
Segundo o que senti
Quando seus corpos bateram
No gelo do chão calejado
Aos pés do Clube Juiz de Fora
Manchando o riso imbecil
Das pernas do Calçadão.

É outono em JF
E os sonhos caem
Caem de dor natural
Caem de morte morrida
Caem de morte matada
Caem de longa agonia
Caem qual ave abatida
Aos olhos dos rifles de caça
Na mão de almas estreitas
Que vagam tornadas zumbis
Nas ruas de olhos vendados
Na crua estupidez de escritórios.

Como moedas caindo no caixa
Os sonhos caem em JF
Sem estardalhaços
Sem placas
Sem monumentos erguidos em praças
Sem pontes separando suas margens...
Os sonhos morrem sem graça
Afinal
É só o outono outra vez...

1986



(Edson Leão)
A tristeza tem paredes de inverno
e um céu cinza ardendo a concreto
Vontade de não estar aqui
Desejo de sobrevoar cidades
Com olhos de colisão

Sou o último míssil soviético
Um hambúrguer nuclear ianque
Em algum abril de 86
Sou o primeiro robô que amou
Sou um satélite que despencou

Curtir a vida é uma sessão da tarde
E uma canção pop arremessada
Descendo nas veias pelo rádio
E guiando minha bicicleta
Até a sua casa outra vez

As ruas têm teias no teto
Um livro ficou entreaberto
Marcando um poema que fiz
Palavras que ninguém leu
Imagens que não fazem falta
Que até minha dor esqueceu...

A tristeza tem seus dias de outono
E um crepúsculo que faz congelar
A voz na garganta e os sentidos

Estou descalço sobre as pedras
Estou equilibrado nos fios
Sentindo o tempo me arrastar
No rush dos carros sedentos
No tanque de meus desatinos
Sou a gasolina dos sonhos
Rangendo
E querendo as estradas de vez...

Ali



(Edson Leão)

Muitas casas caíram
Daqueles dias pra cá
Os vinis arranharam
Ou foram encostados ali...
Ali onde a memória falha
Ali onde eu nunca existi
Ali onde a dor escorre em calha
E a chuva teima em subir
Ali onde perdi guarda-chuvas, amores
E canetas que não devolvi
Ali onde alguém quer um isqueiro
E um cigarro, antes de ir pra sempre dormir
Ali onde a boca sem sono
De teimosa ainda insiste em abrir
Ali onde o cão perde o atalho
E um vagabundo teima em sorrir
Ali pra onde aponta meu calo
E a eternidade se curva a cuspir
Ali...? E onde raios é ali?!?