quinta-feira, 24 de novembro de 2011

QUADRINHOS, CANÇÕES E FILMES CLASSE B



Letra: Edson Leão
Música: Arnaldo Huff

Quadrinhos, canções e filmes classe B
Também me deram dicas sobre o que é viver
Num pingo só de sorte é que eu não viro gringo

Ou por sentir que a tela ao fim virava abismo
Ao som de um Silvio Santos na velha TV
É por aí que a gente se vê *

À luz de uma janela em tardes de domingo
Com morros mastigando casas sem pintura
Crianças aprendendo a crescer na rua

Não era tão fantástico esse show da vida
Apenas surreal crescer nessa matilha
Um lobo solitário ouvindo rock’n’roll

Mas vendo vir um samba onde pisava o chão
Rasgando madrugadas em navalha escura
Marcando a pé a noite de um avesso sujo

E um Odair José soando sem parar
E querendo tirar alguém de vez desse lugar
De vez desse lugar...

*Verso sugerido durante o processo de composição da melodia pelo compositor Arnaldo Huff.

ATRÁS DAS ERAS


Letra: Edson Leão
Música*: Arnaldo Huff

O problema dessa vida
É que é pouco tempo
Tempo de dormir
Tempo de acordar

Na hora da poesia
Tem de trabalhar
Na hora do desejo
Tem de calcular

Se o dia escreve a letra
Falta musicar
Se a noite toca a valsa
Falta alguém dançar

Se a grana às vezes sobra
Na areia o tempo escoa
E a gente perde o agora
No pulso o ponteiro voa

Da hora o “H” se vai embora
No onde do quando
É que se perde o bonde
No passo dessa dança

Fica a esperança
E as pernas vão eternas
Correndo atrás das eras
Correndo atrás das eras...

* Música feita a partir da rítmica do candombe uruguaio.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

UMA BANDA É UM BANDO*


(Edson Leão)
Uma banda é um bando
De tocaia entre os prédios
Com a aspereza dos sons
Apontada pro tédio

Gritarrasssssssonando
Sem paz, nem porém
Na garganta da angústia
Berrando o que vem...

Uma banda é um bando
Na fome de sei lá...
Inútil(idade), servimos pra ser
Essa fresta de vida
Essa festa sem ser
Essa falha, essa busca
De nexo, trovas, e  soul’n’roll

Feito uma tribo, um time
Na decisão, na final
A cada nota um salto
No escuro da confusão
Na explosão da guerrilha
Bebendo amor e paixão
Fingindo a voz da matilha
Uma trilha pra solidão...

*Com tanto tempo de estrada, é normal de vez em sempre vir aquela questão: o que raios é uma banda de rock e porque a gente continua nessa depois de tanta chuva e sol. Bom hoje veio uma (não) resposta sob a forma desse esboço de rock'n' blues, ainda sujeito a ajustes.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

TANGOS

(Edson Leão)

Tangos de línguas em silêncio
Não por amores partidos
Não pela lua vermelha
Não pela luz de uma rua
Não pelo frio do céu

Tangos de vidas perdidas
Ao peso de tempos sombrios
Tangos de frias cadeias
Tangos da carne encharcada
Tangos de bocas fechadas
Tangos que doem na alma

Tangos, somente tangos
Na espera das mães de maio
No dia que não tem atalho
E tarda qual nota suspensa
No corte de um bandonéon

JUDEU ERRANTE

(Edson Leão)

Às vezes caminho por meio mundo
Os olhos gastos de maravilha e miséria

Sou o judeu errante
Aquele sem pátria ou tempo
O homem ilha
Esperando outro vôo pra lua
No aeroporto da solidão
Sem bagagem
O sábio tolo
Tocando um blues no metrô

Meu corpo é uma prisão
Minha alma é uma viagem
Saltando cordilheiras
E abismos profundos

Homero cego
Tateando miragens
E olhando as pernas
Das musas que atiram trocados

Dizem que eu poderia até mudar o mundo
Mas hoje isso não me interessa
Me paga um trago
Que eu te devolvo em canção...

NADA A SER DITO

(Edson Leão)
O capacete guia a moto
E me cumprimenta
Desvio do hidrante
Esbarro na bolsa da menina
Ela não pensa que sou ladrão
O sol no topo da cabeça
O parque Halfeld
Caminha pelo Centro
Arrastado pelos cavalos
Adestrados por Portinari
A última Escola
Do último desfile
De 1979
Salta de um bueiro

Caos no trânsito às três da tarde

O Imperador aplaude
Mas ele nunca dormiu
No casarão do Grupo Central
Um orelhão toca
O velho atende
Do outro lado soa
Em notas trêmulas
A melodia persistente
Da Internacional Comunista

Quem incendiou a replica do King Kong?

Sob a chuva de canivetes
E a espuma da velha fonte
Os cães da polícia avançam
E as crianças não fogem
Mordem as botas ensangüentadas
Como num açougue medieval

Um orelhão toca
O velho atende
Do outro lado soa
Em notas distorcidas
A gargalhada cínica de um punk rock

De um rasgo na Getúlio Vargas
Saltam mulheres
Murilo lê manchetes
Enquanto a banca de jornais
Atravessa a avenida de lado a lado
Ele apenas estranha
Não haver mais ali
Um momentâneo ringue de boxe

Mas as árvores choram
E os fiéis colhem o fluido
Munidos de algodões e velas
Será a primeira noite
Do primeiro eclipse do tempo
Mas o sol se recusa a se por
Os ônibus são tragados para o olho da lua
Não há taxistas no cosmos

Eu tomo um capuchino
E desenho a garçonete
Com a tinta hesitante
Da caneta esferográfica
No guardanapo amarrotado do tempo

Antes da eternidade passar...
O Bar Redentor terá evaporado
Como os miasmas de cerveja
E a fúria dialética de um carnaval
João Cardoso pinta a cena de ouvido
E rascunha um samba no improviso
Transmitido para toda região
Pela antena da PR-B3

No largo do Riachuelo
Um político fala à multidão
Com suásticas agitadas ao vento
A capivara bebe o rio
A mata do Crambeck engole os prédios
Escafandristas recolhem filmes de João Carriço
Entre a lama e páginas de jornais...
A TV Industrial sai do ar
Pedras rolam do Morro do Cristo
Termino o desenho
A garçonete traz a conta
Não há nada a ser dito.

O PLANTADOR DE EDIFÍCIO

(Edson Leão)
O PLANTADOR DE EDIFÍCIO
NÃO OLHA A TERRA
ELE TEM SEDE DE OUTRA GRAMA
QUE MATA O BOI
E PARALISA A FERA

MUUUTROPÓLE*,
DISSERAM UM DIA
E ELA CRESCE
MAS NÃO DIVIDE O QUE MULTIPLICA

VOZ DE PROFETA
VIOLÃO NA CALÇADA
E AS GALERIAS ENGOLINDO A VIDA
BEBIDA NO GARGALO
AGUARDENTE AMARGA
DERRETENDO AS PLACAS

VITRINES FECHADAS
AS PERNAS DAS MENINAS
AS NOITES SEMPRE FRIAS
E A CHUVA QUE MOLHA O VERSO
LACRIMEJANDO AS HORAS
COMO PASSEATA DISPERSADA A PAU

* Alguém em um fanzine nos anos 90 usou esse neologismo para se referir a Juiz de Fora. Até o momento não consegui me lembrar de quem é...

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

O PINTOR E A TELA EM BRANCO

(Edson Leão)

Borrei as tintas da palavra
A faca na tela tenta abrir
A passagem falha
Caem edifícios
Mulheres que acordam
Homens sem jasmins
Decorações de campo
Amortecedores de luz
Nada para o branco
A página nua
O sexo à mostra
As pernas abertas
Sugando a inspiração
Os moveis do quarto
Vinis, vestígios
Impressões digitais
Redemoinho
Dvds, e livros
Bagunças no abismo
A censura do espelho
E o julgamento de Deus
Tudo é sorvido
Pelo vazio da tela
Que o computador não imprimiu
Como um gole de café
Que a manhã digeriu...

NO CAMINHO DO BEN

(Edson Leão)
No caminho do Ben,
Mas ainda em Maya,
Vou à pé pela praia
Lembrando a revolução.

E a menina ginga
Na retina do som,
Sem lenço ,
Na dança do vento,
Brincando com os nervos
Do meu coração
Batuque de angola
Na cor de canela

Ê morena!
Quem desenhou
Tua roupa na janela?
Vendo a dona,
O chão da praia,
Mais parece passarela.

E eu não saio do ar
Enquanto ela não sair
Da alma do dia
Da mira do sol.

Ei garota, me dá um beijo!
Tua saliva, teu sal
Tua saída de praia
Teu sol tua tez
Teu calor de dezembro
O teu tesão-carnaval,
Teu segundo
Teu sempre...

Eternidade é assim:
Um quê de sopro ou montanha
Brutalidade e jardim...
Lembra de mim
Como um...
Aquele um que passou
E tatuou um momento
Na voz da tua canção...
Um maluco em teu suco
Uma mosca em tua nuca
Zumbindo frases sem som

Zen do Ben,
Zum zum zazoeira
Um zum-zen e só:
Acabou o chorare
Errare humanum est
Na cá cá cá, na fé fé fé
Fique calada de boa ...
Me deixe mudo sem nó...
E que fique tudo assim...
Pro que der e vier
Nesse dia branco.

Fique tudo lindo...
Pois no fundo e no raso
O silêncio vai fundo
Onde a palavra estancou...

*Colagem pós-tropicalista do Ben, com débitos com o dito cujo, Tim, Science, Chacal, Baianos e alguns Caetanos, Tom (aquele que é Zé), Chico (o que não é Science), Geraldinho (o Azevedo), Walter(o Franco), Milton, Ronaldo Bastos, Mundo Livre e talvez... TOCA RAUL!

Resumindo: Total falta do que dizer...
OU Não...!

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

CURSO PRÁTICO – APRENDA A DESENHAR COM O LADO ESQUERDO

(Edson Leão)
Quando a lua partir o céu
Estarei aqui
Entre um quadrante e outro
Dividindo o tempo
Sustentando os céus
Buscando o pão
Ordenando à luz:
“Faça-se a tua vontade!”
E feliz pelas abelhas estarem onde estão.

Não haverá janelas
Apenas olhos
E eu te seguindo qual filme
Na parede de meu silêncio vertical
Feliz como as gavetas no teto
Desarrumado como a manhã de um terno
Encolhido como a mão da samambaia no eterno
Um gerânio esperando de tua língua as águas
Um tapete que sobrevoa galáxias
Iceberg num copo de whisky
Aguardando a sede e a colisão
Ouvindo Tom Waits
No hemisfério esquerdo do tédio...

TÃO LONGE TÃO PERTO II

(Edson Leão)
Quando cai do palco
Éramos anjos radioativos
Espreitando a lágrima de Deus
Você me agasalhou em seu corpo
Mas eu via bruxas e fogueiras na escuridão
Ainda assim bebemos um oceano
Até que todos os bares se fechassem
E eu era o estranho ET dissecado pela NASA

Pelo microscópio, eu olhava meu espírito
Ele não sustentava o peso das botas
Então meu corpo cambaleava
Com você pelas ruas
Até se distrair
E ver que estava sozinho
Enquanto o dia clareava
Abrindo as padarias
Empurrando trabalhadores pelas ruas
E boêmios pra casa
E o sol nascia frio
Como toda manhã em JF
E eu cantarolava trincando os dentes
“Why can’t be good!”
Quase cochilando
No ônibus espacial
Que me devolvia em farrapos pra casa…

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

FORA DE SI, À ESPERA DE SOL

(Edson Leão)
Sei que vou desagradar em algum ponto
Pontualmente, sei que não vai ser diferente
Pois gente tenta ser somente o que é
Se é que é possível sequer saber o que se é

Mas ser o que se é ocupa espaço (e é um embaraço!)
E é diferente de ser o que querem de você
O que parece estar na cara que se é
E transparece no cabelo e na roupa em que se está

Esse estar que é sempre uma parte, e só
Esse gesto que ficou na foto é um nó
Nada que explique o complicado de se ser
Esse esparramado de pessoas habitando você
Esse embolado de pessoas se digladiando em Si
Às vezes um desabado de pessoas mergulhado em Dó
Tem horas um emaranhado de pessoas oscilando em Mi
Às vezes um embolado de pessoas transitando em Fá
E sempre um embriagado de pessoas esperando Sol...

(Estivemos fora do ar
Por motivo de inspiração poética
Em nossos neurotransmissores...)

domingo, 21 de agosto de 2011

GENTE

(Edson Leão)
Só se enfiando dentro da própria cabeça às vezes...
“Não há possibilidade de viver com essa gente”*
Gente feito eu, gente de carne, gente de gosto
Gente de mau ou de bom gosto,
Gente em pleno agosto
E eu gosto de gente
E eu aposto em gente
Mas tem hora que gente sobra,
Gente cobra
Gente dobra o peso de carregar vida nas costas...

Só se enfiando dentro da própria cabeça mesmo...
Só fechando a janela e batendo a porta
Afinal tem gente que encosta
Gente que esbarra
Gente que pisa
Gente que incomoda e se acomoda
Gente que insiste em andar na moda, em ditar moda
Em cagar regra,
Gente que faz gente carregar pedra
E eu sou gente do mesmo tipo
Desse tipo besta que sempre erra
Gente que mal deixou de ser bicho
E às vezes berra
Gente que em nome de Deus fabrica a guerra
Gente que sempre atira a primeira pedra
Gente que se pudesse mirava na cruz
Gente que se comporta como urubus
Gente sobre a tragédia da vida alheia
Gente que injeta a inveja na própria veia
Gente que deixa tudo como está
Gente que deixa o mundo piorar
Gente que é careta até pra pirar
Gente que não vê “que gente é pra brilhar”**...

* Secos e Molhados e Oswald de Andrade.
**“Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome”
(Caetano Veloso)

sábado, 13 de agosto de 2011

O QUE HÁ DE BOM

(Edson Leão/Adauto Villela)*

Peço pelo que há de bom em ti
Peço pelo que há de bom
Peço pelo que há de bom em mim
Peço pelo que há de bom
Peço pelo que há de bom enfim
Desde o princípio ao fim
Peço pelo que há de bom enfim
Em tudo, em ti e em mim
Bom ...
Bom...
OM...

Desde o começo o mundo se prepara para as coisas boas
Desde as cavernas nas pinturas de caça pela fartura
Todas as preces, todos os versos, todas as danças da fertilidade
Toda cidade construída lentamente sobre os ombros
Os mesmos ombros sobre os quadris que dançam no fim de semana
Os mesmos ombros de quem já não se engana e quer a vida melhor
E já não aceita quem lhe embroma...
O mesmo corpo que trabalha honesto e quer grana
Como quer amor felicidade, paz e uns bons carinhos na cama

(REFRÃO)

Desde o começo o mundo se prepara para as coisas boas
Seja na meditação, no carnaval, ou gingando a bola sobre os pés
Todo mundo quer o que é bom , não pra amanhã, mas agora,
Todo mundo quer curtir o sol que flutua lá fora
E essa é a nova palavra de ordem
E é pra agora...

Peço pelo que há de bom em ti
Peço pelo que há de bom
Peço pelo que há de bom em mim
Peço pelo que há de bom
Peço pelo que há de bom enfim
Desde o princípio ao fim
Peço pelo que há de bom enfim
Em tudo, em ti e em mim
Bom ...
Bom...
OM...

* Essa realmente surgiu como letra de música e como diria o grupo Rumo "fica faltando a melodia", mas o sol de um sábado à tarde lá fora me fez ter vontade de postar assim mesmo.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

ÓCIO CRIATIVO

Tô na rede deitado
Sou índio
Na janela do tempo
Tô rindo
E a moça me faz um café
Tô vivendo de amor
Tô na fé
Tô mineiro-baiano
Sem plano
E a moça me faz cafuné
Numa praia do Rio
Ou em Bajé
Sem analista sem grilo
Na fé
Vendo o circo pegar
E explodir
Tô aqui só na graça
Pra rir
Desse mundo que passa
Sem mim
Tô sem culpa
Sem lenço ou canção
Carnaval
Viro em revolução
Mas não saio o meu pé desse chão
Zen-bodista
Do ócio, do cio
Mudo o mundo
No olhar que aprecio
E anúncio uma nova estação...

PRA ONDE O TEMPO SOPRAR

(Edson Leão)
Um brinde
Num quarto de som
Do passado.

A sede,
Os discos,
As garotas,
Os Livros
E um velho violão empenado.

Pela janela a fumaça vai
Levando um pouco de nós
Sobre as luzes da cidade,
As buzinas dos carros,
Um trem queimando os trilhos
E nossos risos...

Poucos anos,
Pouco siso,
E um leve aviso:
“Lá vem a tal da vida
Esparramar cada um
Para o canto
Pra onde o tempo soprar”...

* Escrito ao som de "Wulcan" do Black Mountain (vai saber porquê...rsrsr)

terça-feira, 12 de abril de 2011

CADERNO DE RASCUNHOS (ANOS 90?)

Encontrei estes textos num velho caderno. Eles são, na sua maioria, provavelmente da primeira metade dos anos 90. Pelo tempo em que eles ficaram esquecidos, me causaram uma sensação de estranhamento, quase como se eu lesse outra pessoa, o que talvez não deixe de ser em parte verdade. Em todo caso, pelo sim e pelo não, vamos ver o que esse cara tinha a dizer.

I
MESSAGE IN A BOTTLE
*

Beira do mar, sol nascendo
Você achou a garrafa
E a mensagem
Que as ondas trouxeram
Por anos de mares e borrascas.

Aquilo que lê...
Só sobras!

Soçobram navios de palavras submersas
Desejos contidos, sonhos à deriva,
Cujos cascos,
As ondas romperam,
Há tempos, marés e luas.

O naufrago já não existe:
Ossada em praia deserta
Ou quem sabe alma resgatada.

Ressucitado na palavra
Chora a solidão e o frio
Como naquela noite
Há ciclos e ciclos atrás.

No entanto você lê
E o teu peito devolve a vida ao papel
Sem perceber que a dor
Agora é tua.

Tua a ilha e as mágoas
Teu o navio afundado
Tuas as sobras submersas
Teu o silêncio tumular

Tua a solidão feita em pedra
Tua a vastidão de céus e águas
Teu o oceano a atravessar
Tua a palavra
Que se crava na carne...

* Texto batido à maquina no verso de uma lauda do Diário Regional.
OBs.: Com algumas leves alterações contemporâneas.
II

Não sei se é preciso falar
Sobre as pessoas seguindo suas sinas
Arrumando seus cabelos
Pelo reflexo no vidro
Das vitrines e dos carros.
Não sei se é preciso falar
Da nossa vida estacionada
À margem dos dias
Belos dias de sol
Na primavera que ninguém vê.
Não sei se é preciso falar
De tanta gente solitária
De tanta gente cansada
Dizendo da vida o pior.
Eu sei que tudo é assim
Eu sei, faz tempo que é
Mas é preciso dizer
Algo de bom pode vir
Algo de amor
Algum sol
É preciso que existam águas
E que sejam tantas o quanto baste
Pra limpar as tantas marcas
Do tudo de erro calado em nós...

I I I


Sobre sombras e águas

O trajeto dos rios
Em rota de colisão
Com um mar infinito
De sombras e murmúrios
Sempre abriram
Meus olhos ao espanto
Quando à noite
As luzes dos postes
Molhavam seus pés sob as pontes

Não importa
O quão grandes
O quão iluminadas
Sejam as cidades
Elas sempre terminam
Devoradas pelo escuro
Que aos rios entrega seus rumos
No fundo
São estas as mesmas águas
Em que mergulhavam meus olhos
Na infância
Sem nunca encontrar respostas
Até que a voz, em mim secasse
E nenhum pensamento ecoasse.

Mas antes, todas as possibilidades,
Todos os espíritos vagavam
Entre uma extremidade e a outra
Do espaço da pura fantasia
E até hoje algo em mim pergunta
O que pode haver de verdade
Nos medos que me assombravam a alma
Nos calafrios ao perscrutar o escuro
O fundo de um mundo de águas
Oceano de almas afogadas
No interior do próprio pulso
No vinho de veias e artérias
No sopro que me tornou o que sou
Sem cores ou contornos
O esboço de algo inconcluso
Um percurso por se iluminar
Um escafandrista confuso
Ante o reflexo do próprio rosto
Nas ruínas de um barco afundado...

IV

Titanic


Como é estranho o deserto...
Você tão perto
Quase não respira!
Como é cruel
E lenta a solidão
Nesse planeta
Povoado por nós dois
Converso com os livros
Escuto o vento
Um frio
Que quer quebrar as janelas
E nos fez ficar em casa

Surpresa ingrata:
Um iceberg
Interceptou nosso cruzeiro
Entre um canal e outro
Da TV ligada
E fez a noite
Ficar mais gelada
Do que se vagássemos nus pelas calçadas
Catando o granizo
Desses dias glaciais que desmoronam...




V

Minha mão segura a areia que foge
E as luzes se vão com o vento
Tento deter as horas
Mas o tempo é mais feroz
E os dias puros são folhas
Redemoinhos que vão
Varrendo as ruas, os rostos
E as casas velhas se curvam
Ao tom do toque do tempo...

Os jovens dias secam
E o falso amor que marca
É o que te achou sem armas
De pé em frente a escola
Sem tempo para ler as trapaças
Que se aprende nos livros
A vida e seu quadro negro
E o barulho irritante do giz
Ensina a enxergar pela dor
As trilhas do ser feliz


VII


Todos os Quixotes
Estiveram em mim
Só pra terminarem
Triturados por moinhos


VIII


Sol e chuva casamento de viúva
E a luz tece sobras no chão
Desenho de prédios e casas
Do bairro, na tarde
Que vive há alguns anos atras
Sobre uma velha bicicleta
Que passa entre as crianças
Que jogam bola na rua
Ingênuos e tristes dias
De já conhecer a dor
E não saber dissipá-la
Duas rodas tropeçam no meio-fio
Seguem pela calçada
E os meninos brincam
De se degladiar na guerra
E assim preparar o futuro

O guidon trepidando
E as meninas vestidas de moças
São esnobes,
Sem saber que a solidão já vem
Maquiando suas noites futuras

Os pedais aceleram
E buscam um vôo impossível
Não é filme
É a vida traçando seus dias
Não há fuga
É preciso enfrentar suas trilhas
Sol e chuva,
É preciso encontrar o arco-iris?

IX
Podemos entrar
E subir as escadas escuras
Pé-ante-pé
Com os sapatos na mão
Perguntando
“pra onde foi a festa?
Pra onde foram todos?”

Podemos entrar
E olhar da janela
A cidade
As luzes que pulsam com o vento
Tão longe
Tão frias

Podemos olhar
Para um prédio qualquer
E pensar
“ali deve haver uma festa
Ou alguém que espera por alguém
Que olha da janela
As luzes que pulsam com com o vento...”

X

Mulheres sonham
Ao sol da tarde
Homens sonham
Ao sol da tarde
Calor em cálice
Licor
Mormaço
Ossos esperam
Roendo a terra

Grama faminta
Olhos à espreita
Cavando frestas

Sopro das horas
Cabelos em eco
Resvalam em nuvens
Muros recuam
Casas dilatam
Cães se arrastam
Vento bafeja
Hálito de bicho
Aves mergulham
Diluídas no azul
Leveza de galhos
Leque nos montes

A lágrima evapora
Antes mesmo da dor
Pedras derretem
Virando apenas cor...



XI
...meu sonho coube alguns dias sobre as mãos do vale com suas árvores seculares e seu rio arrastando restos de províncias alongadas e suas casas espalhando o cheiro de lenha queimando preparando bifes angu arroz feijão e nenhum movimento tudo parado num raio de oitenta anos de vida nos olhos dos velhos que viram tudo crescer além do que cabia imaginar quando tudo era mato e estrada de terra erguendo poeira do chão sob as patas do gado e o cavalo que ia ver as moças na praça em dia de festa procissão e forró até a noite ter estrelas crepitando sobre a fogueira no dia de um santo e alto de tudo lá ia o balão e o homem com a garrafa no laço cantando um troço difícil de ouvir com a voz embolada de quem nunca chegou a pensar no que é mas chora vendo aquele céu grande cobrindo de estrela a tristeza do mundo...

XII
A chuva trouxe um inverno doce
Sem o desespero de antes
Você está ao meu lado
E a cidade espalha
Sua luz entre os prédios
A poesia vem de seus lábios
Ou da chuva
Que me lembra tantos planos?
Eu não estou triste
Mas é difícil não chorar
O tempo não cabe entre as mãos
As canções envelhecem assim que nascem
E como os bons vinhos
São as melhores
Mas não sei como dizer
Que dor serena é essa
Que explode em mim antes da lágrima
Que é só uma palavra
No livro indecifrável da vida
Que é só uma palavra
No livro indecifrável do amor...


XIII

Sou o senhor que carrega o guarda-chuvas
Pelas ruas dos dias
E ele nem me protege dos estilhaços
“e o mundo vai mal das pernas”
Me diz a menina sorrindo
Com olhos de um verde sem mar
Sou o senhor voando com seu guarda-chuva
Sobre a queda dos dias
A vista aérea não mostra pessoas
Só uma vida submissa e plana
Achatada sob a rota dos dias

XIX

Exercícios de destruição/Ensaios para a extinção

O estouro da manada
Os piores programas da tv
A extinção dos dinossauros
A navalha das más línguas
O confronto das torcidas
O linchamento no subúrbio
A podridão do high society
O desmoronamento de um mundo
Destroços soterrando a verdade
Flores cinzas sobre o túmulo

O estouro da manada
A pele dos búfalos
A carne exposta apodrecendo
O céu se consumindo em chamas
A pele vermelha ardendo
O fim do general Custer
O naufrágio da América
Um presságio
Bem antes dos hippies
Antes dos comunistas
Antes de todas as pistas
Rastreando um sonho abortado

Os piores programas da TV
Circo medieval de horrores
O apresentador bufão
Rei de uma corte miserável
Ensinando a corrosão e o cancro
Animalizando a vida
Para bem além do pensável
Do imaginável
Como um derradeiro pesadelo

A extinção dos dinossauros
No museu de história natural
Os alunos olham
Com seus olhos de futuro
Com seus corpos dilatando
Se expandindo para o mundo
Os ossos expostos
Dos grandes monstros do passado
E a estranha impressão
De que algo deu errado

As crianças estão velhas
Prontas pra matar ou morrer
Às portas da extinção
A navalha das más línguas
Espetando agulhas voodus
Arrastando pelas ruas da cidade
Despedaçando com cavalos selvagens
Esquartejando, degredando, salgando
Queimando, elegendo a bruxa da vez
Cercando campos de concentração
Enchendo câmaras de gás
Bombardeando Hiroshima
Deixando morrer à mingua

O confronto das torcidas
Batalha campal na geral
Fúria de horrorizar animais
Navalha furando a carne
Bola rasgando a rede
A cor da camisa
Diluída em sangue
Festa da morte
Sem sentido algum...