quarta-feira, 6 de novembro de 2013

SEM ASSUNTO


(Edson Leão)
O poema pede um copo
Uma garrafa
Uma mesa
Um bar
Tudo por puro efeito cenográfico
Não que ele queira beber
Não que ele vá respirar
A atmosfera de fumaça
A luz vaga
E os vultos espalhados
Entre o balcão
As mesas
Os banheiros
O poema nada tem a ver com nenhum deles
Mas paga bem pelos seus figurantes
O poema pede sentimentos
Uma densa cadeia eletromagnética
De amores, de fonemas passionais dilacerados
Atirados contra o espelho
Como copos esfacelados no tempo
Metáforas ásperas
Como cacos de garrafa
Apontados para os pulsos
Ou para o rosto de um rival
O poema pede um piano
“As time goes by” dedilhada ou algo igual
Preferiria talvez um Tom Waits
Mas o poema tem trilha própria
E ela se quer pop
Porém arquetípica
Notas que toquem o inconsciente
No mais coletivo de suas equações
O poema quer abalar corações
E eles hoje já estão tão saturados
Que é melhor remeter ao passado
O poema bebe um drink gelado
Movimenta com o dedo os cubos
O poema viu isso num filme
O poema já assistiu filmes mudos
Musicais
Comédias românticas
E até baseados em fatos reais
O poema viu coisas demais
A tal ponto
Que não sabe o que ver
Ou o que dizer
Mas o poema sabe
Que precisa dizer
E bem rápido
Pois mais um pouco e a página acaba
O poema sabe
Que o que importa
É convencer a quem paga
E assim ele insiste em dizer
E em sentir
O ser dor, o fingidor que deveras mente
O poema está quase emocionado
É quando então ela chega
Usando um vestido vermelho
O poema a enxerga do espelho
Treme e derruba o copo
Se atrapalha
Ela chega e se espalha
Pede pra acender o cigarro
Ele entra no jogo
O poema oferece a ela o fogo
É nesse momento
Que a chama se espalha
E que tudo, por fim, arde em brasa
O papel
O poema
A cena
O cenário...
A produção falhou.
A chama
Ao contrário dos sentimentos
Esqueceu de se dizer cenográfica.

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