terça-feira, 12 de abril de 2011

CADERNO DE RASCUNHOS (ANOS 90?)

Encontrei estes textos num velho caderno. Eles são, na sua maioria, provavelmente da primeira metade dos anos 90. Pelo tempo em que eles ficaram esquecidos, me causaram uma sensação de estranhamento, quase como se eu lesse outra pessoa, o que talvez não deixe de ser em parte verdade. Em todo caso, pelo sim e pelo não, vamos ver o que esse cara tinha a dizer.

I
MESSAGE IN A BOTTLE
*

Beira do mar, sol nascendo
Você achou a garrafa
E a mensagem
Que as ondas trouxeram
Por anos de mares e borrascas.

Aquilo que lê...
Só sobras!

Soçobram navios de palavras submersas
Desejos contidos, sonhos à deriva,
Cujos cascos,
As ondas romperam,
Há tempos, marés e luas.

O naufrago já não existe:
Ossada em praia deserta
Ou quem sabe alma resgatada.

Ressucitado na palavra
Chora a solidão e o frio
Como naquela noite
Há ciclos e ciclos atrás.

No entanto você lê
E o teu peito devolve a vida ao papel
Sem perceber que a dor
Agora é tua.

Tua a ilha e as mágoas
Teu o navio afundado
Tuas as sobras submersas
Teu o silêncio tumular

Tua a solidão feita em pedra
Tua a vastidão de céus e águas
Teu o oceano a atravessar
Tua a palavra
Que se crava na carne...

* Texto batido à maquina no verso de uma lauda do Diário Regional.
OBs.: Com algumas leves alterações contemporâneas.
II

Não sei se é preciso falar
Sobre as pessoas seguindo suas sinas
Arrumando seus cabelos
Pelo reflexo no vidro
Das vitrines e dos carros.
Não sei se é preciso falar
Da nossa vida estacionada
À margem dos dias
Belos dias de sol
Na primavera que ninguém vê.
Não sei se é preciso falar
De tanta gente solitária
De tanta gente cansada
Dizendo da vida o pior.
Eu sei que tudo é assim
Eu sei, faz tempo que é
Mas é preciso dizer
Algo de bom pode vir
Algo de amor
Algum sol
É preciso que existam águas
E que sejam tantas o quanto baste
Pra limpar as tantas marcas
Do tudo de erro calado em nós...

I I I


Sobre sombras e águas

O trajeto dos rios
Em rota de colisão
Com um mar infinito
De sombras e murmúrios
Sempre abriram
Meus olhos ao espanto
Quando à noite
As luzes dos postes
Molhavam seus pés sob as pontes

Não importa
O quão grandes
O quão iluminadas
Sejam as cidades
Elas sempre terminam
Devoradas pelo escuro
Que aos rios entrega seus rumos
No fundo
São estas as mesmas águas
Em que mergulhavam meus olhos
Na infância
Sem nunca encontrar respostas
Até que a voz, em mim secasse
E nenhum pensamento ecoasse.

Mas antes, todas as possibilidades,
Todos os espíritos vagavam
Entre uma extremidade e a outra
Do espaço da pura fantasia
E até hoje algo em mim pergunta
O que pode haver de verdade
Nos medos que me assombravam a alma
Nos calafrios ao perscrutar o escuro
O fundo de um mundo de águas
Oceano de almas afogadas
No interior do próprio pulso
No vinho de veias e artérias
No sopro que me tornou o que sou
Sem cores ou contornos
O esboço de algo inconcluso
Um percurso por se iluminar
Um escafandrista confuso
Ante o reflexo do próprio rosto
Nas ruínas de um barco afundado...

IV

Titanic


Como é estranho o deserto...
Você tão perto
Quase não respira!
Como é cruel
E lenta a solidão
Nesse planeta
Povoado por nós dois
Converso com os livros
Escuto o vento
Um frio
Que quer quebrar as janelas
E nos fez ficar em casa

Surpresa ingrata:
Um iceberg
Interceptou nosso cruzeiro
Entre um canal e outro
Da TV ligada
E fez a noite
Ficar mais gelada
Do que se vagássemos nus pelas calçadas
Catando o granizo
Desses dias glaciais que desmoronam...




V

Minha mão segura a areia que foge
E as luzes se vão com o vento
Tento deter as horas
Mas o tempo é mais feroz
E os dias puros são folhas
Redemoinhos que vão
Varrendo as ruas, os rostos
E as casas velhas se curvam
Ao tom do toque do tempo...

Os jovens dias secam
E o falso amor que marca
É o que te achou sem armas
De pé em frente a escola
Sem tempo para ler as trapaças
Que se aprende nos livros
A vida e seu quadro negro
E o barulho irritante do giz
Ensina a enxergar pela dor
As trilhas do ser feliz


VII


Todos os Quixotes
Estiveram em mim
Só pra terminarem
Triturados por moinhos


VIII


Sol e chuva casamento de viúva
E a luz tece sobras no chão
Desenho de prédios e casas
Do bairro, na tarde
Que vive há alguns anos atras
Sobre uma velha bicicleta
Que passa entre as crianças
Que jogam bola na rua
Ingênuos e tristes dias
De já conhecer a dor
E não saber dissipá-la
Duas rodas tropeçam no meio-fio
Seguem pela calçada
E os meninos brincam
De se degladiar na guerra
E assim preparar o futuro

O guidon trepidando
E as meninas vestidas de moças
São esnobes,
Sem saber que a solidão já vem
Maquiando suas noites futuras

Os pedais aceleram
E buscam um vôo impossível
Não é filme
É a vida traçando seus dias
Não há fuga
É preciso enfrentar suas trilhas
Sol e chuva,
É preciso encontrar o arco-iris?

IX
Podemos entrar
E subir as escadas escuras
Pé-ante-pé
Com os sapatos na mão
Perguntando
“pra onde foi a festa?
Pra onde foram todos?”

Podemos entrar
E olhar da janela
A cidade
As luzes que pulsam com o vento
Tão longe
Tão frias

Podemos olhar
Para um prédio qualquer
E pensar
“ali deve haver uma festa
Ou alguém que espera por alguém
Que olha da janela
As luzes que pulsam com com o vento...”

X

Mulheres sonham
Ao sol da tarde
Homens sonham
Ao sol da tarde
Calor em cálice
Licor
Mormaço
Ossos esperam
Roendo a terra

Grama faminta
Olhos à espreita
Cavando frestas

Sopro das horas
Cabelos em eco
Resvalam em nuvens
Muros recuam
Casas dilatam
Cães se arrastam
Vento bafeja
Hálito de bicho
Aves mergulham
Diluídas no azul
Leveza de galhos
Leque nos montes

A lágrima evapora
Antes mesmo da dor
Pedras derretem
Virando apenas cor...



XI
...meu sonho coube alguns dias sobre as mãos do vale com suas árvores seculares e seu rio arrastando restos de províncias alongadas e suas casas espalhando o cheiro de lenha queimando preparando bifes angu arroz feijão e nenhum movimento tudo parado num raio de oitenta anos de vida nos olhos dos velhos que viram tudo crescer além do que cabia imaginar quando tudo era mato e estrada de terra erguendo poeira do chão sob as patas do gado e o cavalo que ia ver as moças na praça em dia de festa procissão e forró até a noite ter estrelas crepitando sobre a fogueira no dia de um santo e alto de tudo lá ia o balão e o homem com a garrafa no laço cantando um troço difícil de ouvir com a voz embolada de quem nunca chegou a pensar no que é mas chora vendo aquele céu grande cobrindo de estrela a tristeza do mundo...

XII
A chuva trouxe um inverno doce
Sem o desespero de antes
Você está ao meu lado
E a cidade espalha
Sua luz entre os prédios
A poesia vem de seus lábios
Ou da chuva
Que me lembra tantos planos?
Eu não estou triste
Mas é difícil não chorar
O tempo não cabe entre as mãos
As canções envelhecem assim que nascem
E como os bons vinhos
São as melhores
Mas não sei como dizer
Que dor serena é essa
Que explode em mim antes da lágrima
Que é só uma palavra
No livro indecifrável da vida
Que é só uma palavra
No livro indecifrável do amor...


XIII

Sou o senhor que carrega o guarda-chuvas
Pelas ruas dos dias
E ele nem me protege dos estilhaços
“e o mundo vai mal das pernas”
Me diz a menina sorrindo
Com olhos de um verde sem mar
Sou o senhor voando com seu guarda-chuva
Sobre a queda dos dias
A vista aérea não mostra pessoas
Só uma vida submissa e plana
Achatada sob a rota dos dias

XIX

Exercícios de destruição/Ensaios para a extinção

O estouro da manada
Os piores programas da tv
A extinção dos dinossauros
A navalha das más línguas
O confronto das torcidas
O linchamento no subúrbio
A podridão do high society
O desmoronamento de um mundo
Destroços soterrando a verdade
Flores cinzas sobre o túmulo

O estouro da manada
A pele dos búfalos
A carne exposta apodrecendo
O céu se consumindo em chamas
A pele vermelha ardendo
O fim do general Custer
O naufrágio da América
Um presságio
Bem antes dos hippies
Antes dos comunistas
Antes de todas as pistas
Rastreando um sonho abortado

Os piores programas da TV
Circo medieval de horrores
O apresentador bufão
Rei de uma corte miserável
Ensinando a corrosão e o cancro
Animalizando a vida
Para bem além do pensável
Do imaginável
Como um derradeiro pesadelo

A extinção dos dinossauros
No museu de história natural
Os alunos olham
Com seus olhos de futuro
Com seus corpos dilatando
Se expandindo para o mundo
Os ossos expostos
Dos grandes monstros do passado
E a estranha impressão
De que algo deu errado

As crianças estão velhas
Prontas pra matar ou morrer
Às portas da extinção
A navalha das más línguas
Espetando agulhas voodus
Arrastando pelas ruas da cidade
Despedaçando com cavalos selvagens
Esquartejando, degredando, salgando
Queimando, elegendo a bruxa da vez
Cercando campos de concentração
Enchendo câmaras de gás
Bombardeando Hiroshima
Deixando morrer à mingua

O confronto das torcidas
Batalha campal na geral
Fúria de horrorizar animais
Navalha furando a carne
Bola rasgando a rede
A cor da camisa
Diluída em sangue
Festa da morte
Sem sentido algum...